por Dra. Leticia Sangaletti
Vivemos um tempo em que todo mundo tem algo a dizer — e ferramentas para dizer. Nunca se escreveu tanto. Nunca se publicou tanto. Mas, paradoxalmente, nunca soamos tão parecidos. Não precisa muito para percebermos que boa parte das pessoas seguem os mesmos “prompts”.
As timelines estão cheias de frases perfeitas, carrosséis bem diagramados, discursos inspiradores com trilha sonora. E, ainda assim, falta algo. Falta o que não se copia. Falta o que não vem de prompt, nem de template: voz autêntica.
Autenticidade, hoje, virou palavra de efeito. Quase um filtro: todo mundo quer parecer autêntico. Mas poucos se arriscam a ser, porque ser autêntico não é só dizer o que se pensa — é saber de onde vem o que se pensa. E isso requer sustentar uma linguagem que não se molda para agradar, mas que nasce do que se viveu, do que se apanhou, do que se acredita mesmo quando ninguém está olhando. Nasce de todas as vivências e experiências que passamos e do que acumulamos através dos nossos olhares.
Porque o que nutre uma voz autêntica não é apenas estilo — é vivência. É leitura. É estrada percorrida. É aquilo que te atravessou, que te emocionou, que te ensinou a olhar o mundo do seu jeito.
Paralelo a esse momento de falta de voz, entramos na era da IA generativa, que facilita a capacidade de criar textos, roteiros, descrições e até poesias em segundos. A inteligência artificial escreve por você. E faz bem feito. Coerente. Rápido. Otimizado para o algoritmo. Mas… e a sua voz?
A IA pode simular sua forma de falar. Mas não pode sentir o que você sente. Não conhece as feridas que moldaram seu tom. Não entende o silêncio entre duas palavras que você escolheu manter. E não tem, sobretudo, o seu repertório.
É ele, o repertório, que impede que tu sejas uma repetição. É o que dá corpo às ideias, densidade às palavras, e presença ao que tu comunicas. É a soma das suas referências — literárias, visuais, emocionais, culturais. Quem tem repertório não depende da tendência, já que possui profundidade para criar por dentro, e não por fora.
Ter uma voz própria, hoje, é um ato de resistência poética. Num mar de conveniências, ela exige mergulho. Num mundo de fórmulas, ela exige dúvida. E onde todo mundo performa, ela exige presença.
Não se trata de originalidade forçada — Mas de coerência profunda. De alinhar intenção e expressão. De reconhecer o ritmo do que é seu, e só seu. Aquela voz que, mesmo sem assinatura, é reconhecível. Porque tem tom. Tem respiração. Tem corpo. Tem alma.
Porque no fim das contas… Ter uma voz autêntica, em tempos de conteúdo genérico, não é sobre volume. É sobre densidade. Não é sobre agradar. É sobre deixar uma marca. E ninguém deixa marca copiando o que já foi dito. A marca vem de dentro. Do repertório, da escuta, do silêncio. E do que você tem coragem de dizer quando ninguém está te olhando. Que a sua voz não seja só conteúdo. Que ela seja memória.
Como cultivar um repertório profundo (e não depender apenas da IA)
A IA é uma ferramenta poderosa — mas sem repertório humano, ela só reproduz.
Você precisa alimentá-la com o que tem de mais seu: sua visão, suas referências, suas camadas. Aqui vão algumas práticas para cultivar essa base criativa:
1. Leia além da sua bolha
Inclua literatura, filosofia, crônicas, biografias, livros-reportagem. Leia o que desafia e o que emociona. O conteúdo que você consome vira matéria-prima da sua linguagem.
2. Observe o mundo como quem escreve sobre ele
Anote cenas do cotidiano, frases que ouve, detalhes que poderiam passar despercebidos. Grandes escritores são, antes de tudo, bons observadores.
3. Busque referências fora do óbvio
Filmes clássicos, música instrumental, arte visual, cultura popular, entrevistas longas. Um bom repertório é aquele que mistura o refinado com o popular, o novo com o eterno.
4. Converse com pessoas de mundos diferentes do seu
Nada expande mais a escuta e o repertório do que bons encontros. Pergunte, ouça histórias, saia do automático das suas próprias certezas.
5. Escreva, mesmo sem publicar
Coloque no papel o que você pensa, sente, observa. O exercício da escrita ajuda a cristalizar um vocabulário pessoal — algo que nenhuma IA pode fazer por você.
E como usar a IA sem perder sua voz?
A Inteligência Artificial pode ser uma aliada da sua criatividade — desde que você esteja no comando. Aqui vão três caminhos para usar bem sem se apagar:
1. Use a IA como ponto de partida, não de chegada
Peça sugestões, estruturas, ideias — mas reescreva com seu estilo, sua emoção, seu olhar. A IA propõe. Você escolhe.
2. Alimente a IA com o seu repertório
Crie prompts com suas referências, suas palavras-chave, seus temas pessoais. Isso ajuda a IA a se aproximar do seu tom — sem substituí-lo.
3. Reescreva, refaça, refunda
Nunca publique direto o que a IA gerou. Edite, melhore, desconstrua. Seu olhar crítico é o que transforma um texto genérico em algo vivo.