Por Dra. Leticia Sangaletti
Falar, hoje, quase sempre vem acompanhado de um gesto que para muitos parece invisível: o de “se posicionar”. Não basta mais dizer algo — é preciso “ter uma linha”, “entregar valor”, “gerar autoridade”. É preciso performar para transparecer algo.
E ao observarmos o quanto isso está se disseminando, nos questionamos em que momento a comunicação virou vitrine? E também nos perguntamos se a partir dessa performatividade estamos de fato nos comunicando, ou apenas nos vendendo.
Isso mesmo. Performar, performance. Palavrinha da moda. Vivemos a era da performatividade, em que tudo o que fazemos (ou dizemos) pode ser transformado em conteúdo. Em que nossas falas, por mais íntimas, parecem ter que obedecer a um certo script de impacto, engajamento ou monetização.
A espontaneidade virou risco. A vulnerabilidade virou estratégia. A pausa virou ruído. Nas redes, isso se manifesta de forma escancarada: discursos encenados, autenticidade roteirizada, verdades reduzidas a legendas. A série Black Mirror, em especial o episódio “Nosedive”, anteviu essa lógica da validação social como moeda de existência. E, sem perceber, muitas vezes deixamos de dizer o que realmente sentimos para dizer o que passamos acreditar que realmente funciona.
Até mesmo a Inteligência Artificial entrou nesse palco: ajuda a escrever posts, escolher palavras, prever o que engaja. Mas será que ela reconhece o que é genuíno? Ou estamos treinando algoritmos para nos tornar versões otimizadas de nós mesmos — ainda que mais distantes da verdade?
Literaturas como O Conto da Aia, de Margaret Atwood, e A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante, mostram como a linguagem pode ser tanto máscara quanto libertação. Entre o que se diz e o que se silencia, mora a identidade.
É claro que comunicar envolve forma, cuidado e intenção. Mas quando a intenção passa a ser puramente agradar, converter, ganhar visibilidade — algo se perde no caminho. E é exatamente o que deveria ser exaltado, o que é seu verdadeiramente.
Num momento em que se fala muito em autenticidade, o que realmente é ser autêntico, se ser autêntico não couber no quadradinho da performance? Nunca se falou tanto em autenticidade. Seja nos briefings, nos perfis de LinkedIn ou nos roteiros de conteúdo: todo mundo quer parecer autêntico. Mas… o que isso realmente significa?
Talvez o primeiro passo seja desconfiar da própria palavra.Porque quando a autenticidade vira exigência de mercado, ela deixa de ser expressão e passa a ser… performance.
Ser autêntico não é sobre ter um “tom de voz definido”, uma “identidade visual coerente” ou um carrossel com verdades estratégicas. Isso pode ser branding — e tudo bem que seja. Mas autenticidade de verdade não obedece pauta nem precisa de legenda com chamada para ação.
Ser autêntico pode ser contraditório, desalinhado, fora do script. Pode ser dizer “não sei”. Pode ser admitir que mudou de ideia, que está cansado, que hoje não quer postar nada.
O poeta Manoel de Barros dizia que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios”. Talvez a autenticidade comece aí: quando deixamos de tentar nos provar o tempo todo e passamos a habitar, com mais leveza, aquilo que somos — mesmo que não seja viral.
A escritora bell hooks lembrava que o amor verdadeiro exige vulnerabilidade. Autenticidade também. Mas a vulnerabilidade, hoje, virou narrativa de impacto. Dizer que chorou já vem com trilha sonora. Contar uma derrota precisa gerar engajamento. E assim, o que era para ser humano vira capital simbólico.
Nos tempos de influencers e inteligência artificial, é possível que a forma mais radical de autenticidade seja… não performar. Não otimizar cada palavra para o algoritmo. Não traduzir tudo em valor de marca. Ficar fora do ar, às vezes.
Porque ser autêntico é, antes de tudo, não se abandonar. É falar quando faz sentido. Calar quando precisa. É lembrar que a vida é maior que o feed, e que nem toda verdade precisa caber num post de 1.200 caracteres com CTA no final.
Autenticidade não se força. Não se imita. Ela se sustenta — mesmo quando ninguém está olhando.
Então, pensando assim, entendemos que comunicar não é apenas se mostrar. É se implicar. É sustentar presença, mesmo quando não há aplausos. E isso vale para além das redes: deve ser considerado nos relacionamentos, nas trocas cotidianas, no que dizemos para o outro — e sobretudo, para nós mesmos.
Tudo pode virar conteúdo, mas nem tudo precisa virar conteúdo. Nem todo silêncio precisa ser preenchido. Às vezes, comunicar-se é só estar inteiro em uma conversa. É dizer algo que não rende curtidas, mas abre uma ponte real.
Em tempos de likes, views e métricas, a pergunta talvez não seja “como me comunico melhor?”, mas sim: “O que estou tentando provar quando falo?”
E se eu não precisasse provar nada… o que eu realmente diria?